Medicina - Estado da arte # 01 - Adiantar os ponteiros não acelera o tempo: Lei de Goodhart
Sobre a leitura e intervenção em sistemas biológicos complexos
Um paciente chega à emergência após um grave acidente, sangrando profusamente. O monitor apita, a pressão arterial está perigosamente baixa. O instinto imediato, e muitas vezes o protocolo, é correr para normalizar essa pressão com fluidos e medicações. Mas, e se essa corrida para atingir um "número mágico" no monitor, em certas situações, pudesse inadvertidamente piorar o sangramento antes que ele seja cirurgicamente controlado? Este dilema, onde uma medida de sucesso – a pressão arterial – se torna um alvo que pode complicar o quadro, é um exemplo vívido de um princípio mais amplo.
Esta e outras complexidades foram o cerne de uma discussão que tive a oportunidade de conduzir (e que você pode assistir na íntegra ). A intenção era explorar um conceito que, ao que parece, ainda ressoa de forma incipiente no debate médico online em língua portuguesa: a Lei de Goodhart. Formulada de maneira sucinta, ela nos adverte: "Quando uma medida se torna um alvo, ela deixa de ser uma boa medida."
Como essa busca por um resultado, guiada por uma métrica aparentemente lógica, pode nos pregar peças?
A sabedoria popular e a história nos oferecem outros exemplos curiosos. No Brasil, por exemplo, há narrativas sobre programas de controle de pragas que, ao oferecerem recompensas por caudas de ratos, teriam incentivado a criação desses animais apenas para "abastecer" o sistema de recompensas – uma manobra que claramente sabotava o objetivo sanitário original. De forma semelhante, o famoso "Efeito Cobra" na Índia colonial ilustra o mesmo desvio: o incentivo para reduzir cobras levou à sua criação. Saindo da ecologia e indo para a economia, a Crítica de Lucas ressalta como políticas baseadas em comportamentos econômicos passados podem falhar quando os agentes adaptam suas estratégias às novas regras, tornando os indicadores antes úteis em guias obsoletos.
O ponto comum é a transformação de um indicador útil em um fetiche, um alvo que, ao ser perseguido, distorce as ações e pode nos afastar do verdadeiro objetivo.
Navegando o Caos: A Normalização Criteriosa em Sistemas Complexos
O desafio se amplifica exponencialmente quando lidamos com a complexidade inerente aos sistemas biológicos, como o corpo humano. Estes são, por natureza, sistemas dinâmicos, onde pequenas intervenções podem ter efeitos em cascata, nem sempre lineares ou previsíveis – o que a Teoria do Caos busca descrever (ainda que a divisão formal de seus subsistemas seja mais um artifício didático).
É nesse contexto que a "normalização" de parâmetros fisiológicos exige uma sabedoria profunda. Sim, existem pilares da vida – o equilíbrio do pH sanguíneo, a adequada oxigenação dos tecidos (O2) – que são inegociáveis e demandam correção rápida e precisa para faixas de normalidade. Contudo, uma miríade de outros marcadores e sinais vitais está imersa numa rede de interdependências complexas, com respostas a intervenções que se manifestam em diferentes escalas de tempo e com variados graus de previsibilidade. A tentativa de "consertar" agressivamente cada desvio numérico pode, paradoxalmente, desestabilizar o sistema. Daí a importância vital dos estudos clínicos: eles nos ajudam a discernir quando nossas intervenções, baseadas em modelos e compreensões parciais, realmente beneficiam o paciente no complexo cenário do seu organismo.
A Lei de Goodhart em Ação: O Dilema da Pressão no Trauma Grave
Retomemos o cenário do choque hemorrágico. A pressão arterial é uma medida crucial, mas transformá-la num alvo inflexível pode ser uma armadilha da Lei de Goodhart. Se a prioridade absoluta for elevar a pressão para um número "normal" antes de controlar a fonte do sangramento (por exemplo, num trauma abdominal por arma de fogo), a infusão vigorosa de fluidos pode aumentar o sangramento ao deslocar coágulos recém-formados ou diluir os fatores de coagulação. O alvo (pressão normal) entra em conflito direto com o objetivo maior (sobrevida com mínima morbidade).
É por isso que conceitos como a hipotensão permissiva ganharam espaço em protocolos de trauma. Em pacientes selecionados, tolera-se uma pressão arterial mais baixa que o usual até que o sangramento possa ser estancado cirurgicamente. Não se trata de negligenciar a hipotensão, mas de aplicar um julgamento clínico apurado, ponderando os riscos e benefícios de cada ação dentro da dinâmica daquele paciente específico.
Rumo a Decisões Mais Sábias: A Aplicação Prática da Cautela
A Lei de Goodhart não nos conclama a abandonar as métricas; elas são faróis essenciais na prática médica. O convite é para a vigilância crítica contra a sua absolutização. A medicina de excelência floresce na intersecção entre a evidência científica, materializada em protocolos e diretrizes, e a arte do julgamento clínico individualizado.
Na prática, isso significa:
Reconhecer cenários de "normalização arriscada": Além da hipotensão permissiva no trauma, existem outras situações onde buscar o "normal" a todo custo pode ser deletério. Pense, por exemplo, na ventilação mecânica de pacientes com Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), onde estratégias de ventilação protetora podem incluir a aceitação de uma "hipercapnia permissiva" (níveis de CO2 um pouco mais elevados) para minimizar o dano pulmonar induzido pelo ventilador.
Contextualizar os números: Um valor de laboratório ou um sinal vital nunca é apenas um número. Ele pertence a um paciente, com sua história, suas comorbidades e sua resposta fisiológica particular.
Priorizar desfechos significativos: O objetivo final não é um monitor "bonito", mas um paciente que recupera sua saúde e qualidade de vida.
Lembrar do princípio hipocrático "primeiro, não causar dano" implica, muitas vezes, a coragem de não intervir ou de intervir menos, baseando-se numa compreensão profunda de que, em sistemas complexos, nem toda batalha contra um número "anormal" precisa ser travada com força total. O verdadeiro alvo é sempre o bem-estar integral do paciente.
Você já se deparou com situações onde perseguir uma métrica parecia desviar do melhor cuidado ao paciente? Compartilhe suas experiências e reflexões nos comentários!